quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Neste site existem existem dados estatisticos atualizados sobre a questão racial no Brasil:


http://www.laeser.ie.ufrj.br/relatorios_gerais.asp

BLOG do Prof. Márcio

Entrevista com o prof. Dr. Kabengele Munanga
Nessa entrevista o professor explica conceitos como racismo; Diáspora Africana; africanidades, etc.


Salto – Professor, como o senhor definiria o racismo?
Kabengele Munanga - Em primeiro lugar, eu gostaria de deixar claro que há uma confusão geral entre alguns termos. Há pessoas que confundem preconceito, discriminação racial e racismo. Os preconceitos, que são pré-julgamentos sobre o outro, sobre outros povos, sobre outras culturas, que são opiniões às vezes formalizadas, às vezes não formalizadas, acompanhadas de afetividade, são diferentes da discriminação. A discriminação é expressa pelos comportamentos observáveis, que podem ser censurados e até punidos pela lei, são atitudes que não são invisíveis.
Outra coisa é um "derivado" que é chamado de racismo, que praticamente é todo um sistema de dominação que está por trás disso, todo um sistema de dominação sustentado por um discurso que, às vezes, tem conteúdo de uma ciência, por ser uma pseudociência, uma doutrina que existe justamente para justificar a dominação, a exploração do outro. Esse discurso legitimador foi considerado, no século XVIII e XIX, como uma ciência da época, uma ciência chamada de raciologia, mas que tem vários nomes. Mas se olharmos bem, na história da humanidade, esse sistema é mais antigo do que a modernidade ocidental. Nós aprendemos que isso começa com a modernidade ocidental, mas é muito mais antigo, podemos colocar na origem dos contatos entre os povos, quando os europeus começaram a imigrar e montaram seus sistemas de dominação. Alguns chamam de ideologia esse sistema de dominação, não o sistema como tal, mas o discurso que acompanha esse sistema de dominação e que legitima isso.
Salto – Como o senhor definiria a diáspora africana?
Kabengele Munanga – Com relação à diáspora africana, podemos situá-la em três momentos: a partir da ideia de que a África é o berço da humanidade, os africanos saíram do continente africano para povoar os demais continentes, isso já faz parte da diáspora africana. Saíram livremente, voluntariamente, e todos, o resto da humanidade, e mesmo aqueles que voltaram para a África e os que invadiram a África, são todos descendentes de africanos. Isso faz parte dessa diáspora mais antiga, que é mais conhecida como "o berço da humanidade". A segunda diáspora é o produto resultante do tráfico negreiro. Tráfico negreiro que levou africanos para todos os cantos do mundo, para o continente asiático, para o continente americano, e para a Europa. E nessa segunda diáspora os africanos não saíram voluntariamente, foram sequestrados, amarrados, transportados e deportados, não podemos considerá-los como imigrantes porque eles não sabiam nem por onde iam, nem para onde estavam sendo levados, nem por que motivo. Foi por meio dessa grande diáspora que as Américas se desenvolveram, que a Europa se desenvolveu, com a mão de obra africana, num mundo em que a tecnologia estava no ponto em que estamos hoje, onde a produção e o desenvolvimento precisam do trabalho humano. Foi graças a essa mão de obra escravizada que nós, os africanos, construímos as riquezas dos países, como o Brasil. A terceira diáspora é a que data de alguns anos antes das independências africanas, os africanos tiveram que sair obrigados pelas condições de vida dos seus países, condições de vida que foram deixadas pelos colonizadores, depois de anos de colonização. A colonização não aconteceu como se esperava, e seu desenvolvimento foi feito com dirigentes fascistas sanguinários, sustentados pelos próprios europeus que colonizaram a África. Alguns fugiram dessas condições de vida, das guerras, para encontrar melhores condições de vida na Europa. Mesmo os intelectuais africanos fugiram da África porque não encontraram melhores condições de produtividade intelectual, e muitas vezes por causa das questões políticas foram para outros países. Os Estados Unidos, por exemplo, é um lugar onde há grandes intelectuais africanos. São africanos que, desde o nascimento, investiram em educação, os pais educaram, alimentaram, pagaram a escola, pagaram a faculdade e, de repente, os americanos os recebem de mão beijada, sem terem investido nem um tostão. São encontradas literaturas africanas nas grandes universidades africanas, nos grandes escritórios africanos, isso é a terceira fase da diáspora africana. Nós temos na África também uma nova diáspora africana: muitos imigrantes dos países africanos em guerra são encontrados, inclusive aqui no Rio de Janeiro, em São Paulo e em outras cidades, alguns raros intelectuais. Mas a grande diáspora africana está nos países ocidentais.
Salto – Como o senhor vê essa diáspora africana no mundo contemporâneo? Quais as implicações políticas das diásporas africanas pelo mundo?
Kabengele Munanga – Essa terceira diáspora, a diáspora mais recente, falando de um modo global, pode ser analisada de acordo com cada país. São países que estão trazendo contribuições, têm uma força de trabalho. Em alguns países, é uma força de trabalho mal remunerada, como nos países ocidentais, uma mão de obra barata. Da mesma maneira que os africanos escravizados fizeram também na diáspora anterior, como resultado do tráfico, os africanos naqueles países estão dando cultura, dando sangue, produzindo etc. Eles estão entrando com uma cultura forte em alguns países europeus. Quando se chega a Paris, acredita-se que aquele é o lugar da música africana. Eles estão entrando com cultura e contribuem, mas têm problemas também, são as maiores vítimas da discriminação racial, as chamadas xenofobias, que nada têm a ver com os imigrantes europeus, têm a ver com os imigrantes, principalmente africanos, dos países árabes e dos países africanos. O que está por trás dessa xenofobia não é apenas que os africanos estão roubando empregos, é que são negros. Essa xenofobia, o que está por trás dela é a discriminação racial, é o racismo. Então, é uma diáspora que tem problemas, os africanos são as grandes vítimas, têm problemas no mercado de trabalho, e é também uma situação muito semelhante com a situação dos africanos da diáspora que nasceu do tráfico negreiro. São as maiores vítimas da discriminação racial dos países que eles ajudaram a construir, como o Brasil e tantos outros da América do Sul. Se olharmos quem construiu as bases da economia colonial brasileira, todo o trabalho foi feito pelo africano, pelos africanos escravizados. Falo dos africanos escravizados, porque nenhum africano nasceu escravo, até que viesse alguém e o escravizasse. É por isso que temos hoje de falar de políticas de ação afirmativa, das cotas, porque eles constituem as maiores vítimas da sociedade. Os países europeus que receberam esses imigrantes africanos já estão falando de multiculturalismo, em ações afirmativas ou de não-discriminação. Quer dizer que todos os países do mundo que receberam africanos das antigas diásporas estão praticamente no mesmo barco.
Salto – Vamos falar agora do Brasil: o que o senhor diria acerca da presença africana e afrodescendente, da presença negra no Brasil? E quais as implicações políticas, antropológicas e psicológicas que o senhor destacaria em relação a essa presença, pensando o contexto brasileiro?
Kabengele Munanga – Essa presença está no cotidiano do brasileiro, está no ar que o brasileiro respira, está no ritmo do corpo do brasileiro, está na comida do brasileiro. Só que o brasileiro também não percebe isso e gostaria de ser considerado como europeu, como ocidental. Isso está claro no sistema de educação. Nosso modelo de educação é uma educação eurocêntrica. A escola é o lugar onde se forma o cidadão, onde se ensina uma profissão. Há escolas que sabem lidar com os dois lados da educação: ensinar a cidadania e a profissão. A história que é ensinada é a história da Europa, dos gregos e dos romanos. No entanto, quem são os brasileiros? Os brasileiros não só descendentes de gregos e romanos, de anglo-saxões e de europeus. São descendentes de africanos também, de índios, e descendentes de árabes, de judeus e até de ciganos. E se olharmos o nosso sistema de educação, onde estão esses outros povos que formaram o Brasil? Então, há um problema no Brasil, além de essas pessoas serem as maiores vítimas da discriminação social, no sistema de educação formal elas não se encontram, elas são simplesmente ocidentalizadas, são simplesmente embranquecidas. Se colocarmos as questões: "quem somos, de onde viemos e por onde vamos?", vamos ver que o Brasil nasceu do encontro das culturas, das civilizações, dos povos indígenas, africanos que foram deportados e dos próprios imigrantes europeus de várias origens. Comemoramos os cem anos da imigração japonesa, e fala-se mais dos cem anos da imigração japonesa do que dos 600 anos da abolição. Não tenho nada contra isso, mas fala-se muito pouco da abolição. Então, se queremos saber quem somos, devemos conhecer todas as nossas raízes, aqueles povos que formaram o Brasil, alguns dizem que somos um país mestiço, mas essa mestiçagem não caiu do céu. Já que não queremos reconhecer a diversidade das coisas, suponhamos que sejamos todos mestiços, vamos pelo menos estudar as raízes da nossa mestiçagem, isso faz parte da nossa cultura. Mas o brasileiro não se incomoda, o brasileiro quer se ver como europeu ocidental, parece que o brasileiro não se enxerga.
Salto – O senhor podia falar um pouco sobre o impacto psicológico dessa situação, com relação à constituição do sujeito?
Kabengele Munanga – Um dos impactos é o que nós chamamos de baixa autoestima. Baixa autoestima do negro. Baixa autoestima do aluno negro na escola. Isso prejudica o processo de aprendizagem, e explica a maior taxa de evasão, de abandono escolar dos alunos negros, comparativamente às crianças de outra ascendência. Se todos são pobres, em especial nas escolas mais pobres da periferia, como explicar que a criança negra é aquela que tem taxa de evasão maior? Isso se deve ao fato de que, na escola, este aluno nunca vê a cara dele. Ele se olha no espelho e não se vê. Ou, quando se vê, quer se ver como branco. Na França, nós chamamos de pele negra, marca branca. Isso faz parte do impacto, do impacto psicológico: a negação da própria humanidade. Há um momento em que o negro introjeta tanto que naturaliza isto: "Sou mesmo inferior, não tenho as mesmas aptidões morais, intelectuais. Não sou capaz de entrar naquela universidade, porque não vou passar". Infelizmente, nós não temos ferramentas para medir isso. Muitas vezes, quando falamos da questão do negro, estamos falando das coisas invisíveis. É como o iceberg. Você vê a ponta do iceberg, mas não dá para ver a parte mais profunda, que é o aspecto psicológico, as consequências disso na educação.
Salto – Ainda tratando um pouco sobre subjetividade, o senhor poderia falar sobre a questão da subjetividade dos/das afrodescendentes, na população brasileira como um todo, em relação à subalternização e a esse processo de invisibilização dos valores civilizatórios afro-brasileiros?
Kabengele Munanga – Tudo isso é decorrente dos mecanismos psíquicos. A partir do momento em que o processo de educação é tão forte e a pressão psicológica também é muito forte, a pessoa passa a introjetar isso. Isso tem consequência até no próprio comportamento das pessoas. A pessoa cria um comportamento de adaptação. Ela devia andar de cabeça erguida, mas anda com a cabeça lá embaixo. Não porque ela nasceu assim, mas porque a própria história fez dela uma pessoa com essa submissão. Coisa que foi completamente naturalizada. Naturalizada não somente no ponto de vista da vítima da discriminação, mas naturalizada do ponto de vista daquele que também é vitima, daquele que discrimina, ele também naturaliza esse comportamento. Acha que é natural. Não lhe incomoda o fato de não ver o negro em um determinado lugar. As pessoas não se incomodam. Essa invisibilidade é que foi introjetada. E, às vezes, as pessoas, como eu, que não nasceram no Brasil, podem chegar aqui e ver as coisas que o brasileiro não vê.
Salto – Falando agora um pouco sobre escola e sobre os valores civilizatórios afro-brasileiros. O senhor acha que é possível pensar uma escola no Brasil impregnada por esses valores afro-brasileiros? E quais os pontos de tensão em relação a isso?
Kabengele Munanga – Bom, um dos nossos problemas é esse. Porque nós formamos um cidadão que não sabe realmente quem ele é. Ele quer ser considerado como europeu, como ocidental. Quando, na realidade, ele é brasileiro. Ele é o fruto, o resultado de um encontro das culturas e das civilizações. No cotidiano, ele passa, tropeça nas contribuições africanas, mas não tem consciência disso. Seria bom oferecer, na formação do cidadão, não apenas os valores ocidentais, mas os valores da história, da visão do mundo, da filosofia de vida dos povos que construíram o Brasil. É necessário que isso seja ensinado nas escolas brasileiras, faz parte do processo da educação, para que uma pessoa possa respeitar a outra. O negro, o índio, eles têm que descobrir que a vida deles, e eles mesmos, foram construídos culturalmente como brasileiros. E que somos em parte europeus e em parte indígenas e africanos. Isso é importante na formação do cidadão. É saber o que nós somos e, a partir daí, nós podemos dar valor ao outro. É respeitar o diferente, aquele que nós chamamos de diferente, que está dentro de mim como cidadão, como cidadão brasileiro. É por isso que as nossas escolas devem ser impregnadas não apenas de valores africanos, mas dos valores de todos que aqui se encontraram, para construir esse Brasil, que é um país da diversidade. E a diversidade é uma riqueza da humanidade. Não é uma pobreza. Mas o que vejo é cada brasileiro querendo ser ocidental. Quando ele chega na Europa, ele vê que não é. É aí que ele descobre que é brasileiro. Mas podemos descobrir isso a partir daqui mesmo. Valorizar aquilo que nós somos.
Salto – O senhor poderia destacar alguns exemplos disso?
Kabengele Munanga – A palavra africanidades está praticamente na boca de todas as pessoas conscientes. Porque, afinal, o que são africanidades? Africanidades não é nada mais que a resistência da cultura africana. Toda a cultura africana, que foi reprimida aqui, resistiu. Contribuiu na formação da identidade brasileira. No modelo de comportamento brasileiro. Essa africanidade está na cultura, e está na própria língua portuguesa falada no Brasil, que recebeu influência muito grande. Essa africanidade, que está na religião, que está na cultura, que está no nosso próprio corpo, que está nos esportes – como a capoeira e tantos outros –, que está nas artes plásticas, esses são os valores africanos. E nosso gesto, e nosso movimento. Eu me lembro, na Copa do Mundo da Itália, quando os Camarões ganharam da Inglaterra, disseram que os Camarões estavam imitando a ginga brasileira. Ginga é o movimento do corpo, técnica do corpo, que vem da educação, que os africanos trouxeram para aqui. Eles não estavam imitando. Os brasileiros é que receberam isso dos africanos. E faz parte da africanidade. Faz parte dos valores africanos que estão aqui, e passamos por cima deles sem saber. São cotidianos.
Salto – Ainda falando sobre africanidades, no campo da reflexão acerca das africanidades, como o senhor vê o Brasil?
Kabengele Munanga – O lugar de reflexão, de produção do conhecimento, é no centro de pesquisas das universidades. Tem algumas pessoas que dedicaram a sua vida intelectual para refletir sobre a cultura africana, a história, tudo isso. Mas essa reflexão ficou presa, praticamente, na academia. Não foi difundida na escola. Algumas pessoas, para conhecer um pouquinho da história da África, precisaram passar pela universidade. Estamos falando hoje de racismo. Tem pessoas que nunca estudaram na escola o porquê do racismo. Que não sabem nem o que é, o que significa. Essas coisas ficaram praticamente presas na universidade. Precisamos tirar essa reflexão da universidade. Tirar essa produção de conhecimento para difundir isso no tecido social da sociedade, para conscientizar as sociedades, para que os brasileiros possam se conhecer melhor. Mais do que isso, são poucos, poucos mesmo, na academia, que estudam, que têm um trabalho de reflexão, de produção de conhecimento sobre a cultura negra, ou sobre os problemas do negro na sociedade. Mas esses poucos são simplesmente brancos. São poucos negros que entraram na academia e têm essa reflexão, têm essa contribuição a dar. Porque eles têm uma história de vida, que eles carregam, há coisas que eles podem explicar melhor do que os outros sobre a sua vida, a sua cultura, a sua visão do mundo. Não é sonegar a contribuição do outro, mas o outro pode ter uma observação acadêmica, mas tem coisas que ele nunca vai sentir. É como você pedir para um burguês explicar o que é fome. Ele vai teoricamente explicar fome, mas ele não vai explicar a fome como alguém que já passou fome na vida dele.
Salto – O senhor teria alguma lenda ou mito para contar acerca dessa problemática?
Kabengele Munanga – Eu fico muito envergonhado contando lendas, mitos. Há momentos em que não me lembro de uma lenda, de um mito. A única coisa que posso observar é que muitas vezes as pessoas não entenderam a cultura africana. Tudo o que os africanos passaram é considerado como fraqueza. Como inferioridade. Como falta de combatividade. São vistos como coitados. Mas eu acho que o africano está pagando muito por causa da sua generosidade, da sua humanidade. Porque todos são descendentes de africanos. Aqueles que invadiram a África, como colonizadores, foram muito bem recebidos. Os africanos nem pensavam que iam fazer da África tudo o que eles fizeram. Os africanos não criaram uma civilização de violência. Isso não quer dizer que não houve conflito na África. Normalmente, na formação de grandes impérios, há conflitos, isso faz parte da história da humanidade. A Europa hoje, que nós consideramos como tranquila, até a 2ª Guerra era um campo de batalha. Todo mundo sabe o que era a Europa. Os africanos são muito generosos. Isso faz parte dos seus valores, da sua visão, o seu respeito à vida, ao outro. E esse valor faz parte. São poucos momentos na vida dos africanos de pegar as armas para se defender. Porque eles têm uma outra visão de mundo.
Salto – O senhor teria alguma indicação a respeito de livros, filmes, que pudéssemos sugerir aos professores e educadores?
Kabengele Munanga – Com relação aos livros, tem muita coisa no mercado. Por causa da Lei n. 10.639/03, as pessoas estão produzindo um monte de coisas para ganhar dinheiro com isso. Então, eu tenho muito receio pra recomendar qualquer livro. Se tivessem avisado, eu poderia fazer uma seleção. Tem livros de reflexão teórica, em nível muito alto, livros intelectuais mais interessantes sobre racismo. "Racismo na sociedade" é um livro do Carlos Moore, de um nível intelectual muito alto, que não seria um livro bom de iniciação para quem começa a entender a África. Mas tem livros paradidáticos, como o livro que eu publiquei junto com a Nilma Lino Gomes, "Para entender o Negro no Brasil de hoje: história, problemas e caminhos". Tem um livro antigo meu que vai ser relançado agora pela Autêntica, que era "Negritude". Um livro de mais de 20 anos atrás, que vai ser publicado de novo. E tem um monte de coisas novas.
Salto – O senhor poderia falar sobre a Lei n. 10.639/03, já que o senhor tocou nela? Gostaria que senhor falasse da sua percepção, depois de tantos anos de Brasil, assistindo à luta do movimento negro, das lideranças, na militância por reivindicações, e sobre o panorama atual: nós temos a lei de cotas em algumas universidades, temos a Lei n. 10.639/03. Como o senhor avalia o panorama atual?
Kabengele Munanga – A Lei, o espírito da Lei foi muito bom. Principalmente pelo fato de ensinar aos brasileiros a história dos negros, começando com a história da África, para saírem dessa visão eurocêntrica da história do Brasil. É uma conquista do movimento negro, porque ela não caiu do céu. Precisou-se de um governo mais sensível para poder atender a essa reivindicação. Mas a Lei tem problemas para seu pleno funcionamento, porque tem resistência. Resistência de algumas escolas, de educadoras/es, que acham que a Lei está criando falsos problemas, pois consideram que o Brasil é um país mestiço, não se trata da cultura do negro no Brasil, não se trata da cultura da África. Tem essa questão da resistência, que explica porque a Lei não está funcionando. O outro problema é que é necessária a formação continuada dos educadores. Os educadores, professores, foram formados nessa educação eurocêntrica. Foram formados por uma sociedade racista. Então, é preciso transformar a cabeça dos educadores, através de uma outra educação, para que a Lei possa funcionar. Além de formar educadores, é preciso também editar novos livros didáticos, de debates, reflexões, divorciados da historiografia oficial. Os livros são repletos de preconceitos. E esse processo está em andamento, tem livros muito bons. E há outros são livros que não dá para recomendar. E creio que se vencermos a resistência, se houver bastante material didático, pessoas formadas que decidissem mudar de cabeça dos educadores, podemos até superar o livro didático que tem um conteúdo negativo. Mas quando a própria educadora e o próprio educador introjetam tudo o que eles aprenderam, quando a invisibilidade do negro não incomoda, quando o racismo não incomoda, então isso não vai sair do lugar. São esses empecilhos, mas creio que o projeto de vocês faz parte dessa mudança, se eu posso considerar assim. Não existem só as instituições escolares tradicionais, já existem novas formas de escola trabalhando para que esse processo possa acontecer.


Políticas de Ação Afirmativa em Benefício da População Negra no Brasil – Um Ponto de Vista em Defesa de Cotas

Um breve histórico

As chamadas políticas de ação afirmativa são muito recentes na história da ideologia anti-racista. Nos países onde já foram implantadas (Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Índia, Alemanha, Austrália, Nova Zelândia e Malásia, entre outros), elas visam oferecer aos grupos discriminados e excluídos um tratamento diferenciado para compensar as desvantagens devidas à sua situação de vítimas do racismo e de outras formas de discriminação. Daí as terminologias de “equal oportunity policies”, ação afirmativa, ação positiva, discriminação positiva ou políticas compensatórias.

Nos Estados Unidos, onde foram aplicadas desde a década de sessenta, elas pretendem oferecer aos afro-americanos as chances de participar da dinâmica da mobilidade social crescente. Por exemplo: os empregadores foram obrigados a mudar suas práticas, planificando medidas de contratação, formação e promoção nas empresas visando a inclusão dos afro-americanos; as universidades foram obrigadas a implantar políticas de cotas e outras medidas favoráveis à população negra; as mídias e órgãos publicitários foram obrigados a reservar em seus programas uma certa percentagem para a participação dos negros. No mesmo momento, programas de aprendizado de tomada de consciência racial foram desenvolvidos a fim de levar a reflexão aos americanos brancos na questão do combate ao racismo.

Qualquer proposta de mudança em benefício dos excluídos jamais receberia uma apoio unânime, sobretudo quando se trata de uma sociedade racista. Neste sentido, a política de ação afirmativa nos Estados Unidos tem seus defensores e detratores. Foi graças a ela que se deve o crescimento da classe média afro-americana, que hoje atinge cerca de 3% de sua população, sua representação no Congresso Nacional e nas Assembléias estaduais; mais estudantes nos níveis de ensino correspondentes ao nosso ensino médio e superior; mais advogados, professores nas universidades, inclusive nas mais conceituadas, mais médicos nos grandes hospitais e profissionais em todos os setores da sociedade americana. Apesar das críticas contra ação afirmativa, a experiência das últimas quatro décadas nos países que implementaram não deixam dúvidas sobre as mudanças alcançadas.

Argumentos em favor das cotas para a população negra no Brasil
As experiências feitas pelos países que convivem com o racismo poderiam servir de inspiração ao Brasil, respeitando as peculiaridades culturais e históricas do racismo à moda nacional. Podemos, sem cópia, aproveitar das experiências positivas e negativas vivenciadas por outros para inventar nossas próprias soluções, já que não contamos com receitas prontas para enfrentar nossas realidades raciais.
Vozes eloqüentes, estudos acadêmicos qualitativos e quantitativos recentes realizados pelas instituições de pesquisas respeitadíssimas como o IBGE e o IPEA não deixam dúvidas sobre a gravidade gritante da exclusão do negro, isto é, pretos e mestiços na sociedade brasileira. Fazendo um cruzamento sistemático entre a pertencia racial e os indicadores econômicos de renda, emprego, escolaridade, classe social, escolaridade, idade, situação familial e região ao longo de mais de 70 anos desde 1929, Ricardo Henriques (2001) chega à conclusão de que “no Brasil, a condição racial constitui um fator de privilégio para brancos e de exclusão e desvantagem para os não-brancos. Algumas cifras assustam quem tem preocupação social aguçada e compromisso com a busca de igualdade e qualidade nas sociedades humanas”:

Do total dos universitários, 97% são brancos, sobre 2% de negros e 1% de descendentes de orientais.

Sobre 22 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza, 70% deles são negros.

Sobre 53 milhões de brasileiros que vivem na pobreza, 63% deles são negros (Henriques, 2001).

Deduz-se dessa pesquisa que se por milagre o ensino básico e fundamental melhorar seus níveis para que os alunos desses níveis de ensino possam competir igualmente no vestibular com os alunos oriundos dos colégios particulares bem abastecidos, os alunos negros levariam cerca de 32 anos para atingir o atual nível dos alunos brancos. Isso supõe que os brancos fiquem parados em suas posições atuais esperando a chegada dos negros, para juntos caminharem no mesmo pé de igualdade. Uma hipótese improvável, ou melhor, inimaginável. Os lobbyes das escolas particulares cada vez mais fortes deixarão os colégios públicos subirem seu nível de ensino, tendo como conseqüência a redução de sua clientela majoritariamente oriunda das classes sociais altas e médias e a diminuição de seus lucros? Quanto tempo a população negra deverá ainda esperar essa igualdade de oportunidade de acesso e permanência a um curso superior ou universitário gratuito e de boa qualidade?

Num país onde os preconceitos e a discriminação racial não foram zerados, ou seja, onde os alunos brancos pobres e negros ainda não são iguais, pois uns são discriminados uma vez pela condição sócio-econômica e outros são discriminados duas vezes pela condição racial e sócio-econômica, as políticas ditas universais defendidas sobretudo pelos intelectuais de esquerda e pelo ex-ministro da educação Paulo Renato, não trariam as mudanças substanciais esperadas para a população negra. Como disse Habermas, o modernismo político nos acostumou a tratar igualmente seres desiguais, em vez de tratá-los de modo desigual. Daí a justificativa de uma política preferencial no sentido de uma discriminação positiva, sobretudo quando se trata de uma medida de indenização ou de reparação para compensar as perdas de cerca de 400 anos de decolagem no processo de desenvolvimento entre brancos e negros. É neste contexto que colocamos a importância da implementação de políticas de ação afirmativa, entre as quais a experiência das cotas, que pelas experiências de outros países, se afirmou como um instrumento veloz de transformação, sobretudo no domínio da mobilidade sócio-econômico, considerado como um dos aspectos não menos importante da desigualdade racial.

A questão fundamental que se coloca é como aumentar o contingente negro no ensino universitário e superior de modo geral, tirando-o da situação de 2% em que se encontra depois de 114 anos de abolição em relação ao contingente branco que sozinho representa 97% de brasileiros universitários. É justamente na busca de ferramentas e de instrumentos apropriados para acelerar o processo de mudança desse quadro injusto em que se encontra a população negra que se coloca a proposta das cotas, apenas como um instrumento ou caminho entre tantos a serem incrementados. Por que então a cota e não outros instrumentos e que instrumentos? Numa sociedade racista, onde os comportamentos racistas difundidos no tecido social e na cultura escapam do controle social, a cota obrigatória se confirma, pela experiência vivida pelos países que a praticaram, como uma garantia de acesso e permanência aos espaços e setores da sociedade até hoje majoritariamente reservados à “casta” branca da sociedade. O uso deste instrumento seria transitório, esperando o processo de amadurecimento da sociedade global na construção de sua democracia e plena cidadania. Paralelamente às cotas, outros caminhos a curto, médio e longo prazos projetados em metas poderiam ser inventados e incrementados. Tratando-se do Brasil, um país que desde a abolição nunca assumiu seu racismo, condição sine qua non para pensar em políticas de ação afirmativa, os instrumentos devem ser criados através dos caminhos próprios ou da inspiração dos caminhos trilhados por outros países em situação comparável.

Reações absurdas e inimagináveis vieram dos setores informados e esclarecidos que geralmente têm voz na sociedade brasileira. Que absurdo, reservar vagas para negros, o que caracterizam como uma injustiça contra alunos brancos pobres! Aqui somos todos mestiços, quer dizer que no Brasil não existem mais nem negros, nem brancos, nem índios, nem japoneses, por causa do alto degrau de mestiçamento. Aqui, não estamos nos Estados Unidos para impor soluções que nada tem a ver com nossa realidade genuinamente brasileira, etc. Vejam que se deixa de discutir uma questão social que, como apontam as estatísticas das pesquisas do IBGE e IPEA, é caracterizada por uma desigualdade racial brutal e gritante. Por que isso? Parece-me que o imaginário coletivo brasileiro está ainda encobertado pelo mito da democracia racial.

Não era possível imaginar as propostas de ação afirmativa num país onde há pouco tempo se negava os indícios de preconceito étnicos e de discriminação racial. Em dezenas de anos os movimentos sociais negros lutaram duramente para arrancar da voz oficial brasileira, a confissão de que esta sociedade é também racista. Embora o racismo esteja ainda muito vivo na cultura e no tecido social brasileiro, a voz oficial reagiu há pouco tempo aos clamores dos movimentos negros, como bem ilustrado pelo texto do “Relatório do Comitê Nacional Para a Reparação da Participação Brasileira na III Conferência Mundial das Nações Unidas Contra o Racismo, Discriminação racial, Xenofobia e Intolerância Correlata”, realizada em Durban, África do Sul, de 31 de agosto a 07 de setembro de 2001. Nesse relatório, no que tange às propostas em benefício da “comunidade” negra: “a adoção de medidas reparatórias às vítimas do racismo, da discriminação racial e de formas conexas de intolerância, por meio de políticas públicas específicas para a superação da desigualdade. Tais medidas reparatórias, fundamentadas nas regras de discriminação positiva prescritas na Constituição de 1988, deverão contemplar medidas legislativas e administrativas destinadas a garantir a regulamentação dos direitos de igualdade racial previstos na Constituição de 1988, com especial ênfase nas áreas de educação, trabalho, titulação de terras e estabelecimentos de uma política agrícola e de desenvolvimento das comunidades remanescentes dos quilombos”, - adoção de cotas ou outras medidas afirmativas que promovam o acesso de negros às universidades públicas” (Ministério da Justiça, 2001: 28-30).

Infelizmente, comparativamente ao avanço constatado nesse relatório, os três candidatos principais ao posto de Presidente da República nas eleições de 2002 não mostraram uma postura clara e firme sobre este problema, ou adotaram uma estratégia de desinformação, ora para não se comprometerem com a população negra, ora para não perderem seus eleitores no meio de racistas brancos, já que o importante para alguns deles era ser eleito presidente, a qualquer custo! O atrito entre o estudante negro Rafael dos Santos e o candidato Ciro Gomes no debate que ocorreu em 7 de abril na UnB, não deixa dúvida sobre a estratégia do silêncio e da desinformação. Indagado sobre sua posição no que diz respeito às políticas de cotas para negros, o candidato desconversou dizendo que os negros não precisam que ninguém tenha “peninha” deles, além de impedir que a palavra fosse franqueada ao estudante. Como explicar o silêncio, a incerteza e até mesmo a desinformação dos candidatos sobre uma questão tão importante para a vida e o futuro de mais de 70 milhões de brasileiros de ascendência africana? Estratégia ou resíduo perverso do mito de democracia racial que ainda ronda no inconsciente coletivo do brasileiro? Tudo é possível!

O que me espanta muito não é tanto a reação popular, facilmente explicável. O que me surpreende é que as mesmas reações e os mesmos lugares comuns se encontram na minha universidade, uma das mais importantes do Hemisfério Sul em termos de produção de conhecimento científico e da reflexão crítica sobre as sociedades humanas. Nessa universidade brotou a chamada Escola Sociológica de São Paulo, da qual participaram eminentes estudiosos como Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Oracy Nogueira, João Batista Borges Pereira e tantos outros que iniciaram os estudos sobre o negro na ótica das relações raciais e interétnicas, rompendo com a visão apenas raciologista e culturalista de Nina Rodrigues e seu discípulo Arthur Ramos, entre outros.

Rebatendo e refutando algumas críticas contra as cotas para negros no Brasil

1. Dizem que é impossível implementar cotas para negros no Brasil, porque é difícil definir quem é negro no país por causa da mestiçagem, tendo como conseqüência a possibilidade da fraude por parte dos alunos brancos que alegando sua afro-descencência pelo processo de mestiçagem ocupariam o espaço destinado às verdadeiras vítimas do racismo. Em primeiro lugar, não acredito que todos os alunos brancos pobres possam cometer este tipo de fraude para ingressar na universidade pública, por causa da força do ideal do branqueamento ainda atuando no imaginário coletivo do brasileiro. Um racista essencialista, psicologicamente convencido da superioridade de sua “raça” não troca de campo com tanta facilidade. Muitos não aceitarão a troca, em nome do chamado orgulho da raça. Conscientes desta dificuldade, alguns recorrem aos falsos princípios de democracia advogando a introdução de uma flagrante injustiça contra brancos pobres se o Brasil adotar cotas em favor da maioria de negros pobres. Se for fácil identificar os alunos brancos pobres, por que o seria tão difícil para os alunos negros pobres? Em segundo lugar, a identificação é uma simples questão de auto definição, combinando os critérios de ascendência politicamente assumida com os critérios de classe social. Isto tem sido o critério ultimamente utilizado até pelos pesquisadores e técnicos no último recenseamento do IBGE. Ele vale tanto para brancos quanto para negros e para os chamados amarelos. Não vejo necessidade em recorrer seja ao exame da árvore genealógica dos auto declarados negros, seja ao exame científico através do teste de DNA. Se constatar depois de algum tempo e experiência que a maioria de alunos pobres beneficiados pela política de cotas é composta de alunos brancos pobres falsificados em negros, será então necessário reavaliar os critérios até então adotados. De qualquer modo, os recursos investidos não seriam perdidos, pois teriam sido aproveitados por segmento da população que também necessita de políticas públicas diferenciadas. Uma definição pelos critérios científicos dificultaria qualquer proposta de ação afirmativa em benefício de qualquer segmento, pois muitos que se dizem negros podem ser portadores dos marcadores genéticos europeus. Também muitos dos que se dizem brancos podem ser portadores dos marcadores genéticos africanos. O que conta no nosso cotidiano ou que faz parte de nossas representações coletivas do negro, do branco, do índio, do amarelo e do mestiço não se coloca no plano do genótipo, mas sim do fenótipo, num país onde segundo Oracy Nogueira o preconceito é de marca e não de origem.

2. Outros argumentos contra a política de cota recorrem ao fato do abandono desta política nos Estados Unidos, por não ter ajudado no recuo da discriminação racial entre brancos e negros naquele país e por ter sido aproveitado apenas pelos membros da classe média afro-americana, deixando intocada a pobreza dos guetos. Ponto de vista rejeitado pelos defensores de cotas nos Estados Unidos, baseando-se na mobilidade social realizada pelos afro-americanos nos últimos quarenta anos, mobilidade que não teria sido possível se não fosse implantado a política das cotas. Os próprios americanos observam que no Estado da Califórnia, o primeiro a incrementar cotas e o primeiro também a abandoná-las, recuou o ingresso de alunos afro-americanos nas universidades públicas daquele Estado. Mas devemos dizer que os afro-americanos têm outras alternativas para ingressar e permanecer nas universidades que aqui não temos por causa das peculiaridades do ”nosso” racismo. Eles têm universidades federais de peso criadas para eles, a Universidade de Howard, por exemplo, e universidades criadas pelas Igrejas independentes negras para as comunidades afro-americanas, principalmente nos Estados do Sul considerados como os mais racistas (é o caso da universidade de Atlanta que foi fundada pelos negros e para os negros). Além disso, a maioria das universidades públicas americanas até as mais conceituadas como Princeton, Harvard e Stanford continuam a cultivar as ações afirmativas em termos de metas, sem recorrer necessariamente às cotas ou estatísticas definidas. Deixar de discutir cotas em nossas universidades por que não deram certo nos Estados Unidos, como dizem os argumentos contra, é uma estratégia fácil para manter o status quo. As cotas se forem aprovadas por alguns Estados como já está acontecendo no Rio de Janeiro e na Bahia, deveriam, antes de serem aplicadas, passar por uma nova discussão dentro das peculiaridades do racismo à brasileira, cruzando os critérios de “raça e de “classe” e respeitando a realidade demográfica de cada Estado da União. Um censo étnico da população escolarizada de cada Estado é indispensável para incrementar as políticas públicas no que diz respeito à educação dos brasileiros, a curto, médio e longo prazo.

3. Por que a cota misteriosamente não é também destinada aos índios e sua descendência cujos direitos foram igualmente violados durante séculos, além de serem despojados de seu imenso território, indagam outros argumentos contra a política de cotas. Os movimentos negros que reivindicam as cotas nunca foram contra as propostas que beneficiariam as populações indígenas, as mulheres, os homossexuais, os portadores de necessidades especiais, até as classes sociais pobres independentemente da pigmentação da pele. Apenas reivindicam um tratamento diferenciado, tendo em vista que foram e constituem ainda a grande vítima de uma discriminação específica, racial. Eles têm uma clara consciência da diluição no social geral e abstrato como propõe o pensamento da esquerda, que até hoje continua a bater nas teclas de uma questão que segundo eles é simplesmente social, fechando os olhos a uma cultura racista que abarca indistintamente pobres, médios e ricos em todas as sociedades racistas.

Os afro-descendentes constituem um pouco mais de 70 milhões de brasileiros, em relação às populações indígenas estimados em menos de quinhentos mil, apesar do seu notável crescimento demográfico. Visto deste ângulo, o problema do ingresso dos estudantes negros, tendo em vista que a sua taxa de escolaridade na escola é das mais baixas. O que faltam são as propostas de políticas públicas específicas a curto, médio e longo prazo, direcionadas para atender aos problemas de escolaridade, educação e ingresso dos índios na universidade. Diluí-los nos problemas sociais dos negros e ou dos pobres em geral seria cometer no plano da prática social os erros do pensamento teórico e livresco do intelectual de esquerda sem pés no chão.

No já citado relatório do Comitê Nacional para a Preparação Brasileira na III Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, nota-se entre as medidas governamentais a serem tomadas em favor dos índios:

§ Criação, no âmbito do Ministério da Educação, da Coordenação Geral de Educação Escolar Indígena;

§ Estabelecimento de 1666 escolas indígenas, que contam com 3041 professores indígenas;

§ Realização do projeto Tucum, de formação e capacitação de professores indígenas em nível de magistério, para as comunidades de Mato Grosso (Xavante , Peresi, Apiaká, Irantxe, Nambikwara, Umotina, Rikbaktsa, Munduruku, Kayabi, Borôro e Bakairi, entre outras). É coordenado pela Secretaria de Estado da Educação-MT, além da FUNAI, tem convênio com a Universidade Federal do Mato Grosso e prefeituras municipais do estado.

§ Realização do projeto 3º grau indígena, visando a implantação de três Cursos de Licenciatura Plena na Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT, destinados à formação de 200 professores indígenas, com previsão de início das aulas em julho de 2001 e término em 2005. A iniciativa está sendo viabilizada por meio do Convênio 121/2000, de 30 de junho de 2000, celebrado entre aquela instituição de ensino e a Secretaria de Estado de Educação do Mato Grosso (SEDUC-MT0 e do Convênio nº 11, de 15 de dezembro de 2000, celebrado entre a UNEMAT e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). As atividades pedagógicas intensivas ocorrerão no Campus da UNEMAT localizado na cidade de Barra do Bugres-MT.

Os professores José Jorge de Carvalho e Rita Laura Segato, em sua proposta de cotas e ouvidoria para a universidade de Brasília, ilustram a inconsciência das universidades brasileiras face à questão indígena pelo fato “dos primeiros quatro índios brasileiros que neste momento se preparam para ser médicos somente conseguiram ingressar numa Escola de Medicina de Cuba! Imaginemos a situação: é uma faculdade cubana, que não dispõe nem minimamente dos recursos com que contam universidades como a USP, a UNICAMP, ou a UnB, que está ajudando o Brasil a saldar a sua dívida de cinco séculos para com os índios brasileiros!” (Carvalho e Segato: 2001)

4. A política de cotas raciais poderia prejudicar a imagem profissional dos funcionários, estudantes e artistas negros, porque eles serão sempre acusados de ter entrado por uma porta diferente. Ou seja, no momento das grandes concorrências as cotas poderiam perigosamente estimular os preconceitos. Pior ainda, sob pretexto de favorecer materialmente uma população desfavorecida, essa política pode prejudicar os valores mais respeitáveis: o orgulho e a dignidade da população negra. Contra este tipo de argumento, eu diria que ninguém perde seu orgulho e sua dignidade ao reivindicar uma política compensatória numa sociedade que por mais de quatrocentos anos atrasou seu desenvolvimento e prejudicou o exercício de sua plena cidadania. Desde quando a reparação de danos causados por séculos de discriminação prejudica a dignidade e o orgulho de uma população? Os judeus têm vergonha em reivindicar a indenização das vítimas do holocausto? Onde estão o orgulho e a dignidade de uma sociedade que continue a manter em condições de igualdade gritante um segmento importante de sua população e que durante muitos anos continuou a se esconder atrás do manto do mito da democracia racial? As cotas não vão estimular os preconceitos raciais, pois estes são presentes no tecido social e na cultura brasileira. Discriminar os negros no mercado de trabalho pelo fato deles terem estudado graças às cotas é simplesmente deslocar o eixo do preconceito e da discriminação presentes na sociedade e que existem sem cotas ou com cotas. Mas uma coisa é certa, os negros que ingressarão nas universidades públicas de boa qualidade pelas cotas terão, talvez, uma oportunidade única na sua vida: receber e acumular um conhecimento científico que os acompanhará no seu caminho da luta pela sobrevivência. Apesar dos preconceitos que persistirão ainda por muito tempo, eles serão capazes de se defender melhor no momento das grandes concorrências e nos concursos públicos a exibir um certo conhecimento que não dominavam antes. Abrirão com facilidade algumas portas, graças a esse conhecimento adquirido e ao restabelecimento de sua auto-estima. A história da luta das mulheres ilustra melhor o que seria o futuro dos negros. A discriminação contra elas não foi totalmente desarmada, mas elas ocupam cada vez mais espaços na sociedade não porque os homens se tornaram menos machistas e mais tolerantes, mas porque, justamente graças ao conhecimento adquirido, elas demonstram competências e capacidades que lhes abrem as portas antigamente fechadas. O racismo contra negros não recuou nos Estados Unidos. Mas hoje, graças ao conhecimento adquirido com cotas, eles tiveram uma grande mobilidade social, jamais conhecida antes.

5. Os responsáveis das universidades públicas dizem que o ingresso de negros nas universidades pelas cotas pode levar a uma degradação da qualidade e do nível do ensino, por que eles não têm as mesmas aquisições culturais dos alunos brancos. Mas, acredito que mais do que qualquer outra instituição, as universidades têm recursos humanos capazes de remediar as lacunas dos estudantes oriundos das escolas públicas através de propostas de uma formação complementar. (Carneiro, 2002: p.23). Algumas universidades encaminharam propostas de projetos neste sentido, solicitando recursos financeiros junto ao Programa Nacional de Cor junto a UERJ, financiado pela Fundação FORD.



Finalmente, a questão fundamental que se coloca não é a cota, mas sim o ingresso e a permanência dos negros nas universidades públicas. A cota é apenas um instrumento e uma medida emergencial enquanto se busca outros caminhos. Se o Brasil na sua genialidade racista encontrar alternativas que não passam pelas cotas para não cometer injustiça contra brancos pobres – o que é crítica sensata – ótimo Mas dizer simplesmente que implantar cotas é uma injustiça, sem propor outras alternativas a curto, médio e longo prazo, é uma maneira de fugir de uma questão vital para mais de 70 milhões de brasileiros de ascendência africana e para o próprio futuro do Brasil. É uma maneira de reiterar o mito da democracia racial, embora este já esteja desmistificado.

Os que condenam as políticas de ação afirmativa ou as cotas favorecendo a integração dos afro-descendentes utilizam de modo especulativo argumento que pregam o status quo, ao silenciar as estatísticas que comprovam a exclusão social do negro. Querem remeter a solução do problema a um futuro longínquo, imaginando-se sem dúvida que medidas macroeconômicas poderiam miraculosamente reduzir a pobreza e a exclusão social.

As cotas não serão gratuitamente distribuídas ou sorteadas como os imaginam os defensores da “justiça”, da “excelência” e do “mérito”. Os alunos que pleitearem o ingresso na universidade pública por cotas, submenter-se-ão às mesmas provas de vestibular que os outros candidatos e serão avaliados como qualquer outro de acordo com a nota de aprovação prevista. Visto deste ângulo, os sistema de cotas não vai introduzir alunos desqualificados na universidade, pois a competitividade dos vestibulares continuará a ser respeitada como sempre. A única diferença está no fato de que os candidatos aspirante ao benefício da cota se identificarão como negro ou afro-descendente no ato da inscrição. Suas provas corrigidas, eles serão classificados separadamente, retendo os que obtiverem as notas de aprovação para ocupar as vagas previstas. Desta forma, serão respeitados os méritos e garantida a excelência no seio de um universo específico.


Por KABENGELE MUNANGA,Professor Titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo. Autor de vários trabalhos na área de antropologia da população negra africana e afro-brasileira, entre outros, Os Basanga de Shaba (1986); Negritude (1988), Estratégias e políticas de combate à discriminação racial (1996) e Rediscutindo a mestiçagem no Brasil (1999).
O professor Kabengele é um dos maiores especialistas do tema no Brasil.

Revista Espaço Acadêmico - Ano II - no. 22 - Março de 2003 - Mensal - ISSN 15196186